No Reino das Águas Claras
Lá no sítio do Picapau Amarelo, mora uma senhora de sessenta e quatro anos, Dona Benta. Fica sentada na varanda de uma casinha branca, com uma cestinha de costura ou um livro na mão, divertindo-se muito. Narizinho mora com a vovó Benta. A menina tem uma boneca de pano, feita por tia Nastácia, que vive na casa com elas.
Narizinho Arrebitado, Lúcia, gosta muito da boneca Emília e do ribeirão que contorna o sítio. Todas as tardes as duas vão passear à beira d’água, para dar farelo de pão aos peixinhos.
Certa vez, como de costume, depois de alimentar os lambaris que conhecia bem, deitou-se na relva com a boneca, pois estava bem cansada. Estava quase sonhando, quando sentiu carícias em seu rosto. Viu um peixe vestido de gente, com casaco de príncipe, cartola e guarda-chuva e viu também um besouro trajado como gente também.
Os dois começaram um diálogo e Narizinho, assustada, só ouvia:
– Sr. Príncipe, o que Vossa Alteza faz aqui? – diz o besouro.
– Ah, Mestre Cascudo, recomendações médicas do doutor Caramujo, receitou-me ares do campo. Aqui estou – respondeu o Príncipe.
Ele nunca tinha visto um humano e pensou que o que estava vendo era uma montanha de mármore ou, talvez, uma fera, como disse o Mestre Cascudo, que foi embora, pois não queria confusão.
O peixinho curioso ficou para descobrir o que era. Nesse momento, Narizinho falou:
– Não me reconhece? Sou a menina que alimenta os peixinhos todos os dias. Apresentou Emília ao peixinho, que as cumprimentou e disse que era o Príncipe Escamado, rei do Reino das Águas Claras.
Conversaram durante um tempo e o Príncipe convidou Narizinho para conhecer seu reino.
Antes que tia Nastácia as chamasse para retornar a casa, foram embora rapidamente os três: o Príncipe, Narizinho e Emília, que parecia emburrada.
Como Emília não conversava, o Príncipe questionou por que motivo a boneca estava tão séria e Narizinho respondeu que a boneca era muda de nascença.
– Não há problema, no meu reino tem o Dr. Caramujo, que cura qualquer doença com suas pílulas famosas. Vamos ver o que ele pode fazer.
A paisagem ao redor mudou completamente: florestas de algas, de corais, uma maravilha…
– Chegamos, disse o Príncipe.
Havia um portão de coral rosa e branco, um sonho, que estava aberto. O Príncipe percebeu mais uma vez que o guarda não fechara o portão e com certeza estava dormindo. O guarda era um major do exército marinho, chamado Major Agarra-e-não-larga, um sapão, que vivia cochilando no posto.
O Príncipe, bravo, ia acordá-lo com um pontapé, mas Narizinho teve uma ideia melhor: vesti-lo de mulher. Colocaram avental, touca da Emília e, no lugar da lança, um guarda-chuva. Ficou como uma velhinha.
– Agora sim, Príncipe, pode acordá-lo. – disse Narizinho.
Assim que acordou, viu-se em frente à majestade fantasiado de velha, não pôde acreditar. Como castigo, o Príncipe, condenou-o a engolir cem pedrinhas no lugar de seu pagamento de cem moscas diárias.
Entraram no palácio e foram para a sala do trono, pois era o horário da audiência real.
O Príncipe sentou-se no trono e Narizinho, ao seu lado. A sala era cor de leite, com muitos pingentes de pérolas e muitas pérolas por todo lado.
Bateu-se em uma concha sonora com uma pérola negra, para dar início aos trabalhos -reclamações dos súditos para resolver alguns problemas. Um a um se aproximavam e o Príncipe solucionava as questões.
Até que uma senhora baratinha de mantilha aproximou-se rapidamente do Príncipe e falou apressada:
– Estou procurando o Pequeno Polegar, que fugiu do livro. Parece que todos os personagens dos livros estão muito cansados de estar no mesmo lugar e querem conhecer uma menina de Narizinho arrebitado. A menina imediatamente descobre que a senhora era Dona Carochinha, muda então a voz e questiona:
– A Senhora conhece essa menina?
– Não, mas sei que mora numa casinha branca com duas velhas corocas.
Nesse momento, Narizinho fica indignada com o comentário e trava uma guerra com a dona das histórias antigas, que vai embora furiosa e resmungando muito.
Depois desse incidente indesejado, o Príncipe encerrou a audiência e pediu para o ministro preparar uma festa em honra a Narizinho. Antes de tudo, o Príncipe as leva para um belo passeio pelo fundo do mar.
O coche de gala, com seus cavalos-marinhos, passou por lugares incríveis: floresta de coral, conchas de diversos formatos, baleias dando de mamar para os filhotinhos e a gruta dos tesouros, que as duas resolveram explorar. Ficaram alucinadas com tantas maravilhas, muitas joias…
Narizinho teria ficado mais tempo para explorar a gruta dos tesouros, mas foi rapidamente para a sala de jantar, pois já estava atrasada para o evento real.
O jantar estava excelente, ainda mais acompanhado por música de uma orquestra até com cigarras. Outras atrações apareceram, até um anãozinho como bobo da corte. Nesse momento, Narizinho percebeu que o anãozinho era na realidade o Pequeno Polegar.
Enquanto ele tentava fazer graça, apareceu inesperadamente na sala a baratinha, perguntando se o Príncipe tinha encontrado o Pequeno Polegar. Narizinho, muito esperta, escondeu o pequeno e depois acabou brigando feio com Dona Carochinha mais uma vez.
O Príncipe resolveu levar Narizinho à casa da melhor costureira do reino, Dona Aranha, pediu-lhe que fizesse um vestido lindo e retirou-se.
Dona Aranha, parisiense, e suas seis ajudantes teceram o tecido cor-de-rosa e ornaram o vestido com estrelinhas douradas. Rapidamente o vestido ficou pronto e Narizinho, deslumbrante. O vestido ficou tão lindo que o espelho rachou de alto a baixo. A aranha começou a dançar de alegria, pois a libertação dela chegara, uma vez que conseguira quebrar o espelho de tão linda que ficara a sua criação e assim deixaria de ser aranha para ser o que quisesse.
Narizinho pediu para as aranhas costurarem um vestido para Emília. Só nesse momento, a menina percebeu a ausência da boneca. Depois da briga com a Carochinha, quando Emília roubara os óculos para a baratinha não enxergar nada, a boneca fugira… Desde esse incidente, não viu mais a boneca. Narizinho começou a se preocupar…
A preocupação era tanta que Narizinho contou ao Príncipe sobre o desaparecimento de Emília, e o soberano pediu ao seu exército para encontrá-la.
A festa anunciada começou – Narizinho estava deslumbrante, mas preocupada, sem notícias de sua amiga.
O salão de festas parecia um jardim de flores com pérolas arrumadas por beija-flores. Muitas pérolas soltas no chão.
O príncipe convidara apenas seres pequeninos para a festa. Dançaram muito: taturanas, besouros, caranguejos… Enfim teve até quadrilha. Foi uma confusão com cenas engraçadas… Um convidado tropeçou numa pérola e se machucou muito. Precisaram chamar o doutor Caramujo.
Vendo a eficiência do médico, Narizinho conversou com ele sobre o problema da mudez de Emília e marcaram uma consulta para o dia seguinte.
No meio do baile, os guardas avisaram o Príncipe que Emília tinha sido assaltada e estava desacordada na gruta dos tesouros.
Narizinho, rapidamente, foi ajudá-la e a encontrou toda arranhada. Assim, o Dr. Caramujo foi chamado com urgência.
Ninguém sabia o que acontecera, mas se o Dr. Caramujo conseguisse fazê-la falar, todos saberiam.
Narizinho, naquela noite, não conseguiu dormir, pois ouvia gemidos no jardim. Era o sapo ainda fantasiado de velha coroca. Narizinho perguntou ao sapo:
– O que acontece, Major Agarra?
– O Príncipe me deu o castigo de engolir cem pedrinhas. Já engoli noventa e nove e não consigo mais, peça ao Príncipe que me libere da condenação.
Narizinho, de camisola, foi procurar o Príncipe para libertar o Major Agarra do castigo. O soberano nem lembrava da punição, pois, segundo ele, brincara. Assim, comunicaram ao sapo para desengulir as pedrinhas. Mas, que nada! O sapo não conseguia nada. Esse seria um trabalho para o Doutor Caramujo e só no outro dia.
Na manhã seguinte, Narizinho levou Emília ao doutor Caramujo. O médico estava aborrecido, pois furtaram todas as pílulas de seu depósito e não existia quem as fizesse, pois o boticário responsável já morrera e não contara a fórmula para ninguém.
– Sobrou apenas uma pílula, mas não é a falante. A única maneira de fazer Emília falar é cortar a garganta dela e colocar a falinha de um papagaio, explicou o Dr. Caramujo.
Indignada, Narizinho disse que isso era inadmissível – matar uma ave para Emília falar.
– Nunca! – esbravejou Narizinho.
Nesse instante, apareceu o sapo com estufamento por ter engolido tantas pedrinhas.
Imediatamente o Dr. Caramujo fez a incisão, pois era um caso de extrema emergência. Ele começou a retirar as pedrinhas e verificou, para sua alegria, que eram suas pílulas.
– Agora podemos curar sua boneca. Basta engolir uma pílula – disse o médico.
Emília engoliu, com nojo, a pílula e imediatamente falou:
– Estou com gosto de sapo na boca.
Falou muito, sem parar … deixou todos atordoados.
Também contou o que tinha acontecido na gruta dos tesouros. A dona Carochinha apareceu lá, procurando o tal Polegada… Ela estava fugindo e eu pulei em cima dela e ela me arranhou toda. Emília não falava coisa com coisa… Chamava o Dr. Caramujo de Cara de Coruja. A dona Baratinha me deu um liscabão e me acordou…
– Como ela começou a falar agora, as ideias não estão ainda boas, e nem as palavras – explicou o médico.
Depois de tudo resolvido, retornaram ao palácio. Mas, de repente, ecoou um som estridente – Narizinho! Vovó está chamando!… A voz parecia um trovão, foi tão forte que todos sumiram, como se fosse num encanto.
Voltaram para o ribeirão, já estavam no sítio. Narizinho correu para contar todas as novidades vividas. Dona Benta achou que ela estava sonhando. Sapo, rei, papagaio… convidou todos a passar uns dias conosco?
– Você está delirando! Como você sonha!!!
– Quem vem aqui amanhã é o Pedrinho – acrescenta Dona Benta.
– Narizinho, como você pode ficar por aí com essa boneca desse jeito, toda desarrumada?
– Dona Benta, foi culpa da Narizinho, ela deu minhas roupas para o sapão – disse Emília pela primeira vez.
A avó e a tia Nastácia ficaram chocadas. Imagine só, uma boneca falar! Nem acreditaram. E a boneca falava, falava… e contou a inacreditável história. Nem respirava pra falar
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